OBSERVEM: A entrega do resultado de um teste genético é um momento cercado de expectativas. Era a primeira vez que, na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, em agosto de 2007, Dr. Jorge Forbes e Dra. Mayana Zatz fariam juntos a devolutiva de um teste de DNA positivo para Ataxia Espinocerebelar Machado-Josef. A solenidade do ato foi quebrada quando, ao receber a paciente, o psicanalista surpreende. Mostra curiosidade sobre a história e a vida da moça, em detrimento à devolutiva do diagnóstico. O envelope sobre a mesa ganhou segundo plano. Ao fazer isso, o analista tirou a consistência e o peso da doença, deu um tom de leveza ao encontro e possibilitou à paciente legitimar o diagnóstico, já sabido por ela, que utilizava cadeiras de rodas havia dois meses.
Sob um resultado genético recai o peso do Maktub – o estava escrito – o destino escrutinado. Não é essa a aposta da psicanálise! A ética da psicanálise é a ética do desejo. É singular, toca cada sujeito, naquilo que ele tem de mais íntimo e verdadeiro. Antepõe-se ao que universaliza a todos, generaliza e adequa aos padrões e protocolos. Na ética do desejo, a decisão é sempre do paciente. Um diagnóstico não se justifica por si. Ao incidir no intervalo entre o genótipo e o fenótipo, a psicanálise convida o sujeito para o diálogo. Se com o DNA não há a possibilidade de negociação, há com seu hospedeiro. A escolha é um exercício humano, singular e intransferível. Expressa na máxima de Jacques Lacan, “por nossa condição de sujeitos somos sempre responsáveis".
A resignação e a compaixão, o vírus “RC”, batizado por Jorge Forbes, é encontrado na maioria dos pacientes e seus familiares acometidos por doenças genéticas. Visando a desativar essa carga viral, o Projeto Desautorização do Sofrimento, paradigma clínico da Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano, ganhou a pronta adesão da paciente. No caso em questão, a direção do tratamento psicanalítico foi: 1) incidir sobre a separação simbiótica entre a paciente e seu pai; possibilitando que a paciente tomasse posse de seu diagnóstico, de modo que se tornasse única, fugindo da sombra da mãe e de outros familiares já mortos em função da doença; e 2) provocar a desautorização do sofrimento, alternativa que poderia abrir para outras perspectivas de vida além da certeza do já sabido e confirmado pelo diagnóstico. Como poetou Drummond, se “a dor é inevitável, o sofrimento é opcional”.
A paciente, após três meses de tratamento, solicitou uma declaração em que constasse o CID da sua doença e seu estado clínico. Quis concorrer a uma vaga de trabalho no Programa de Apoio a Pessoa com Deficiência da prefeitura de São Paulo. Era o primeiro caso em mais de 30 mil atendidos no Genoma que um paciente fazia tal solicitação. Via de regra, a demanda é para atestados de afastamento junto ao INSS e para pedidos de aposentadoria.
Sua vida amorosa também ganhou novos matizes. Viajou, foi para a bela ilha, cantou no luau, velejou, paquerou e beijou na boca. Conheceu um rapaz pela internet, no virtual ele era mais interessante, no encontro olhos nos olhos, a certeza de que a resposta à pergunta “é namoro ou amizade” era a segunda alternativa.
Seis anos se passaram desde o primeiro encontro entre paciente, psicanalista e geneticista e da adesão dela ao tratamento psicanalítico. Tive o privilégio de conduzir o tratamento. Apesar do impedimento ao seu comparecimento às sessões de análise, em decorrência do agravamento dos sintomas, nossos contatos perduram, agora, por meio de mensagens por celular e e-mail. Ela perdeu a voz. Mas seu desejo e a aposta na vida ainda falam.
Nas trocas de mensagens, ela conta do medo da morte, de deixar as pessoas que ama, de deixar o Petito, seu cachorro, de se sentir cansada e sem forças, mas perdura a teimosia e a coragem em viver. Quando, da última vez que nos comunicamos, ela enviou-me um e-mail dizendo: “Fiquei com a certeza de que se não tem como fazer para parar o tempo, há como passar por ele vivendo da melhor forma possível e é assim que voltei a pensar, e é assim que vou tentar viver”.
Esse caso confirma, de maneira inexorável, a aposta da psicanálise no impossível, a forma como uma análise transforma e vivifica o sujeito, indo além da doença, desacelerando o seu avanço, abrindo para perspectivas de uma vida qualificada e sustentada na honra. Mostra, também, uma parceria inusitada e criativa, em outros tempos impensada, entre a psicanálise e a ciência do século XXI, a genética. Se sobre essa caía o peso da decifração dos nossos enigmas, vê-se o contrário, que a palavra última não é dada pelo resultado do DNA, esse precisa ser interpretado. A interpretação de um resultado diagnóstico e a decisão a ser tomada é uma postura, um empréstimo de consequência, reflexo de uma escolha subjetiva. Como escreveu Gabriel Garcia Marques, em Amor nos Tempos do Cólera, “que é a vida, e não a morte, que não tem limites”.
Liége Lise é psicanalista. Atende na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano – USP/SP. É membro do IPLA- Instituto da Psicanálise Lacaniana- SP
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